quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

TERRAMAREAR

Exposição de Maristela Salvatori, de 19 de dezembro de 2017 a 11 de março de 2018, na Pinacoteca do Margs, apresentando uma antologia da artista, reúne obras produzidas ao longo dos últimos 35 anos
Curadoria da historiadora e crítica de arte Paula Ramos







A relação entre gravura e fotografia sempre foi uma constante na poética de Maristela Salvatori, assim como imagem produzida e memória, representado e vivido. Seus primeiros trabalhos  já o demonstram: eles partiam de fotos de álbuns de família, tais como retratos dos pais, irmãos e amigos, cenas escolares, registros de festas e, sobretudo, do veraneio no litoral. Essa era a matéria-prima da artista, cujas gravuras, diametralmente distintas das obras atuais, surgiam marcadas pelo uso da cor e pelo protagonismo da figura humana. | The relationship between printmaking and photography has always been a feature of Maristela Salvatori’s creative practice, as image produced and as memory, represented and experienced. This can already be seen in the early works: based on photographs from family albums, portraits of her parents, siblings and friends; pictures of school events, parties, and particularly seaside holidays. These formed the artist’s raw material for prints whose use of colour and presence of the human figure are diametrically opposed to her current work.




Uma série emblemática na trajetória da artista, assinalando novos interesses em sua pesquisa visual, é Viagem de rio (1993). Durante aproximadamente dez dias, Maristela percorreu, a bordo de uma chata, o leito do Rio São Francisco, junto com dezenas de outras pessoas. Porém,  nas gravuras resultantes dessa vivência, a representação dos passageiros é mínima: a figura humana, portanto, cedeu espaço para formas da própria embarcação, com suas linhas geométricas e alongadas, quase  arquitetônicas, em diálogo com a paisagem natural. | One of the key works in the artist’s development is Viagem de rio (1993), which indicated new interests in her visual approach. Maristela took a ten-day barge trip on the Rio São Francisco, accompanied by dozens of other people. But the resulting prints show very few of those passengers: the human figure has made way for the shapes of the boat itself, with its elongated, geometric, almost architectural lines in dialogue with the natural landscape.







Hangares, arsenais, armazéns portuários, estações de trem. Espaços graves, silenciosos, desertados.
Alguns críticos já comentaram a proximidade dessas imagens com a atmosfera melancólica da Paris registrada pelo fotógrafo Eugène Atget (1857–1927), na qual a presença humana se dá, quando muito, fantasmagoricamente. Assim como Atget, Maristela passa ao largo das grandes vistas e dos monumentos característicos e, assim como ele, apresenta-nos fragmentos íntimos do seu percurso pelas cidades. Nesses cenários fixos, de luz estudada, composição rigorosa e foco extenso, como não considerar que algo misterioso está prestes a acontecer? Como não sentir presenças latentes na ausência inconteste? | Warehouses, dockyards, sheds, railway stations. Solemn, silent, deserted spaces.
Some critics have mentioned the close connection between these images and the melancholy atmosphere of the Paris captured by the photographer Eugène Atget (1857-1927), in which the human presence is often like some ghostly apparition. Like Atget, Maristela avoids grand vistas and characteristic monuments to present us with intimate fragments of her own journeys through cities. In these fixed scenes, with their studied lighting, rigorous composition and extensive focus, how can one not think that something mysterious is about to happen? How can one not sense some latent presence in that undeniable absence?











Os cruzamentos entre as tradições da fotografia e da gravura em metal ganham nova corporeidade nas fotogravuras em polímero, que a artista passou a desenvolver em 2012, durante seu estágio pós-doutoral no Canadá. Conhecida como “gravura não tóxica”, essa técnica lhe permite explorar o “grão da imagem”, caro ao vocabulário da fotografia química. O resultado aparece em composições de textura suave e luz sussurrante, que apontam outros desdobramentos, distintos dos verificados nas imagens oriundas da adoção da água-forte e da água-tinta. Se, nessas últimas, o traço sobre a placa de cobre e o uso de agentes corrosivos parecem assegurar a permanência do que é representado, nas gravuras em polímero a transitoriedade é reforçada pela atmosfera etérea dos tons em cinza. | Intersections between the traditions of photography and intaglio print acquire a new form in the polymer photogravures the artist began to make in 2012 during her post-doctoral fellowship in Canada. This “non-toxic print” technique allows exploration of the “grain of the image” which exists in chemical photography, resulting in compositions whose smooth texture and murmuring light point towards further developments, different from those achieved in images using etching and aquatint. In those traditional processes the line on the copper plate and the use of corrosive agents seems to guarantee the permanence of what is represented, while the transitory nature of polymer prints is emphasised by the ethereal atmosphere of different tones of grey.




Em obras recentes, explorando o recurso da grade e montando painéis fotográficos, a artista decidiu incorporar a impressão digital. Nesses trabalhos temos, invariavelmente, no centro das composições, um módulo vazio, em branco, que bem poderia estar reservado a uma gravura, a uma monotipia, mas que permanece como o “branco das possibilidades”. Comentando seus caminhos e opções, a artista afirma: “Eu nem penso muito, sinto vontade de fazer e faço. Tem uma frase do Pierre Soulages que gosto bastante e que, em livre tradução, seria: O que eu encontro me mostra o que eu procuro.  Sei que outras pessoas também escreveram nesse sentido, e esta consciência traduz bem a ideia do conhecimento em arte: muito da bagagem que carregamos não se expressa racionalmente”. | Recent works explore the grid and assembly of photographic panels in which the artist uses digital print. These works always have an empty white module in the centre of the composition, which might well have been reserved for a print, a monotype, but which instead remains as the “white of possibilities”. The artist says of her choices of directions and decisions, “I don’t think very much. I feel like doing it and I do it. There’s a phrase by Pierre Soulages that I like, which loosely translated would be, What I find shows me what I’m looking for. I know that other people have also written similar things, and it’s a good interpretation of the idea of knowledge in art: much of the baggage we carry with us cannot be expressed rationally.”



Ao recorrer aos materiais e aos procedimentos da gravura, mesmo que busque representar formas angulosas com uma geometria projetiva aparentemente acurada, prevalecem a hesitação e o desencontro das linhas, franqueando o gestual. Esse caráter é notório nos polípticos em monotipia, precisos na configuração das grades e imprecisos nos encaixes. Justapostas, as monotipias estabelecem um conflito entre o apelo figurativo do conjunto e a essência abstrata de cada um dos segmentos; mais recentemente, escancaram a própria matriz fotográfica, quando um dos módulos é substituído por uma fotografia em preto e branco, também esta excerto de uma imagem maior, cujas linhas e texturas se confundem com as impressões. As grades estruturantes dessas monotipias, portanto, notabilizam o fracionamento, a montagem, o artifício, a natureza indicial do trabalho. | Using the materials and processes of printmaking, even while seeking to depict angular shapes with an apparently accurate geometry, there is also a sense of hesitation and of lines not connecting, with an emphasis on gesture. This is a particular feature of the monotype polyptychs, with an accurate grid format but which fit together imprecisely. The juxtaposed monotypes set up a conflict between the figurative appeal of the whole and the abstract essence of each individual segment; more recently they include the photographic source itself, when one of the modules is replaced by a black-and-white photograph, which itself is taken from a larger image and whose lines and textures merge with those of the print. The grid structure of these monotypes thus highlights fragmentation, assembly, artifice and the suggestive nature of the work.





Para Maristela, a fotografia é referência e, nesse sentido, também matricial. Quando necessário, a artista elimina o que não lhe interessa, a exemplo da vegetação e da presença humana; alguns elementos são simplificados ou omitidos; outros, ampliados. Maristela dificilmente  conserva a proporção dos edifícios e dos espaços  fotografados, destacando-os pela perspectiva. Arcos, telhados, escadas, paredes, pilares e componentes estruturais ganham amplitude que, via de regra, os desnaturaliza, estabelecendo outras convenções de representação. | Maristela uses photography both as reference and as source. When necessary the artist removes anything that does not interest her, such as vegetation or the human figure; some elements are simplified or omitted, others are expanded. She rarely retains the proportions of the buildings and spaces in the photographs, but instead emphasises them through perspective. Arches, roofs, steps, walls, columns and structural components take on a scale that tends to denaturalise them and establish new conventions of representation.


Nos anos 1990, frequentando um ateliê coletivo e aguardando sua vez para imprimir, Maristela depositou duas matrizes lado a lado. Foi quando um colega, vendo as chapas, comentou ter gostado do “díptico”. Ela não estava, efetivamente, propondo dípticos, mas, surpresa com a percepção, decidiu  imprimir as matrizes justapostas. O resultado lhe abriu novas possibilidades de configuração. Se, por um lado, a artista passou a, literalmente, desdobrar os elementos das paisagens, num processo lúdico de encaixe de planos e pontos de fuga, por outro, descortinou o módulo, referencial para seus trabalhos posteriores. | While waiting to print in a group studio in the 1990s, Maristela placed two plates side by side. A colleague in the studio said that she liked the “diptych”. There had been no plan to make diptychs, but intrigued by the idea she decided to print the plates together. The result suggested new possibilities for arrangements. While on the one hand the artist literally began to unfold elements of the landscapes through a playful process of fitting together planes and vanishing points, on the other hand the idea of the module arose, which would be a key feature of the works to come.

Fotos: Carlos Stein VivaFoto
Textos: Paula Ramos

Entre os trabalhos mais recentes de Maristela Salvatori (Porto Alegre, RS, 1960), estão curiosas montagens fotográficas em impressão digital. Para os que acompanham a poética da artista, essas obras podem gerar surpresa. Afinal, Maristela é reconhecida por sua pesquisa calcada nos processos da gravura, sobretudo da gravura em metal, e o que temos são fotografias justapostas, formando uma estrutura de grade. Despretensiosos, esses trabalhos, desenvolvidos ao longo de 2012, apresentam temas e elementos que pautam a poética de Maristela, a saber: perspectivas acentuadas, fragmentos arquitetônicos, postes, luminárias e paredões evidenciando os cruzamentos de linhas e planos no espaço; eles também destacam as etapas de edição e de montagem, caras à artista, e são resultado de um processo de impressão, embora digital. Por fim, eles nos convidam a imaginar o que poderia estar no módulo em branco, invariavelmente centro das composições. A observação da obra da artista nos sugere que o branco das possibilidades, em sua posição nuclear, poderia estar reservado a uma imagem gravada; afinal, em trabalhos ligeiramente anteriores, Maristela fez o procedimento contrário: os módulos eram em monotipia e, em determinado ponto, inseriu uma imagem fotográfica, direcionando para a matriz de seu processo.

Fotografia e gravura andam juntas na mostra Terramarear, antologia que apresenta cerca de 120 trabalhos desenvolvidos ao longo dos últimos 35 anos. Das gravuras em metal dos anos 1980, pautadas em fotografias de familiares e amigos em momentos de lazer no litoral; passando pela série Viagem de rio (1993), decorrente de um percurso de 10 dias, em uma chata, ao longo do Rio São Francisco; chegando às cenas de hangares, cais, construções monumentais, silenciosas e abandonadas em cidades visitadas pela artista. Num diálogo com a paisagem, natural ou construída, figuras humanas foram retiradas, ruídos urbanos, excluídos, permanecendo a arquitetura, com seus planos, linhas, levezas e pesos no espaço. Nesse processo, talvez tão importante quanto a viagem física, que possibilitou o registro fotográfico e, por extensão, a produção dessas obras, está a viagem interna, que abriu a Maristela novas possibilidades de pensar a representação do espaço, o lugar do observador – e, por consequência, dela mesma – e a própria técnica da gravura, com suas múltiplas possibilidades.

AGRADECIMENTOS
A realização deste projeto só se tornou possível devido ao engajamento de muitas pessoas e instituições. A artista e a curadora agradecem à equipe do Margs e aos seguintes parceiros: Airton Cattani, Carlos Stein, Carolina Bouvie Grippa, Diego Groisman, Fabio del Re, Felipe Schulte, Fernanda Eschberger, Flavio Krawckyk, Henrique dos Santos Garcia, Luiza Reginatto, Marcelo Chardosim, Martino Piccinini, Mélodi Ferreira, Nick Rands, Paulo Gomes e Vera Chaves Barcellos; agradecem, igualmente, à Fundação Vera Chaves Barcellos, à Pinacoteca Aldo Locatelli – Prefeitura Municipal de Porto Alegre e à Pinacoteca Barão de Santo Ângelo – Instituto de Artes da UFRGS; e, por fim, ao Instituto Goethe, parceiro de tantos projetos de promoção e divulgação da arte e da cultura em nosso Estado e, em especial, da arte impressa. 

quinta-feira, 28 de julho de 2016

International Meeting: IN PURE PRINT

International Meeting: IN PURE PRINT, ocorrido na cidade do Porto, Portugal, em maio de 2016, em sua terceira edição, persiste no princípio: tornar a pesquisa em espaço de imersão e criação. Nesta edição, a Gravura afirma-se na ironia da sua impureza, e usa do titulo- IN PURE PRINT- para mostrar como as combinações podem usar os meios puramente mecânicos da reprodução, ou interpretar de modo subordinado a propósitos artísticos subvertendo os seus princípios tecnológicos usuais em contexto comercial.

O encontro trouxe à superfície o desejo e fascínio pela experimentação tecnológica como suporte das artes impressas e, com outros autores, sejam estes fotógrafos, ilustradores, gravadores, colaborando para celebrar uma contemporaneidade que investiga o possível e o impossível, o puro e o impuro, através do acesso ao patrimônio tecnológico e documental ainda existente na cidade do Porto.  Incluiu sessões exploratórias da prática da impressão em contextos oficinais comerciais dispersos na cidade. A execução da publicação central combinando métodos de arqueologia tecnológica, levantamento de materiais e colaborações com profissionais (encadernadores, impressores, e outros) no ativo foi o tema agregador desta semana.








Um olhar de Berlim sobre a arte impressa em Porto Alegre (1960 a 2015)








PASSAGE: Southern Hemisphere International Printmaking exhibition

Jincheon Print Making Museum, Corea
artistas brasileiros participantes:
Eduardo Eloy ( Fortaleza)
Maria do Carmo Veneroso (Minas Gerais)
Maristela Salvatori ( Rio Grande do Sul)
Lurdi Blauth ( Rio Grande do Sul)
Helena Kanaan ( Rio Grande do Sul)
Maria Bonomi (São Paulo)
curadoria: Helena Kanaan
http://www.jincheon.go.kr/art/main.do